
Reflexão sobre Atos dos Apóstolos 8,26-40. Com uma linguagem narrativa e envolvente, a biblista Rosanna Virgili apresentou duas meditações sobre o encontro entre Filipe e o eunuco de Candace, destacando os aspectos missionários presentes no texto, que se tornou objeto de reflexão.
Comunicação XIV Capítulo Geral IMC *
Esse período inicial da missão da Igreja primitiva podemos dar um intervalo entre duas etapas.
A primeira fase missionária dos apóstolos foi em Jerusalém e na região da Judeia. Os judeus estavam perseguindo os cristãos. Por isso muitos cristãos fugiram de Jerusalém para outras cidades, especialmente após o apedrejamento de Estêvão, que foi morto por sua fé, tornando-se o primeiro mártir cristão que, como Jesus, morreu pedindo a Deus que perdoasse aqueles que o haviam matado.
A segunda fase da missão da Igreja ocorreu depois que os cristãos fugiram de Jerusalém, deixando apenas os apóstolos. Aqui encontramos Filipe, nessa época da Igreja. A passagem que lemos tem alguns personagens: (a) um anjo (b) Filipe, (c) o eunuco.
Protagonismo do anjo de Deus
Essa não é a primeira vez que o evangelista Lucas fala de anjos. No evangelho de Lucas, ele fala de Gabriel, que encontrou Zacarias no templo. Zacarias não tinha muita fé, embora fosse um homem instruído, filho de Abraão e um homem justo. O anjo representa aquele que porta o rosto de Deus. Por não acreditar naquele que tem a face de Deus, Zacarias ficou mudo.
Os anjos acompanham toda a apresentação lucana da vida da igreja (desde Jesus no Evangelho até o final dos Atos dos Apóstolos). Parece que Deus se sentiu fechado e esmagado pelo “sacerdócio” da época. Zacarias não tinha fé, estava longe do povo, não representava o vínculo entre Deus e o povo. Nos Atos dos Apóstolos, vemos um anjo falando com Paulo e salvando da tempestade toda a tripulação do barco em que estavam embarcados (Atos 27,23-26).
Os anjos eram também a representação da mão de Deus. O mesmo Deus também quer reunir as pessoas hoje, para confortá-las e viver entre elas. Lucas coloca um anjo no início de sua obra (Evangelho de Lucas) e no final de sua obra (Atos dos Apóstolos). Onde há um anjo, há um Deus que quer salvar aqueles que estão longe, aqueles que são excluídos, aqueles que são descartados, aqueles que precisam de consolo.
Diácono Filipe
Filipe é um dos sete diáconos escolhidos pelos discípulos para servir as viúvas helenistas que eram discriminadas pelos judeus ao compartilharem alimentos. Filipe era companheiro de missão e ministério de Estêvão, que foi morto por ser forte em sua fé. Os diáconos são homens de fé. O primeiro sinal da comunhão cristã se manifestou por meio da partilha, do serviço e da “diaconia” (caridade, generosidade…). No final da missão dos 72 discípulos, Jesus se apresenta como um diácono, um servidor: “Mas não vos alegreis porque os demônios se submetem a vós; alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos nos céus” (Lc 10,20).
Jesus tomou sobre si a ação diaconal, de quem serve: isso explica por que o diácono era um serviço importante e reconhecido na Igreja. O diácono não apenas servia à mesa, mas também era aquele que partia o pão, até mesmo o pão da Palavra, e o compartilhava com os outros. Vemos Filipe como um homem de fé por meio do qual muitas pessoas se tornaram discípulos de Jesus, foram batizadas e, mais tarde, confirmadas pelos apóstolos por meio da imposição de mãos.
O anjo enviou Filipe para ir da estrada de Jerusalém para Gaza. Gaza era uma cidade pobre que foi destruída em 57 d.C. Era uma área deserta. Filipe obedeceu a essa ordem e se revelou um verdadeiro discípulo de Jesus. Em um deserto como aquele, não havia nada para procurar, mas ele foi para lá mesmo assim. E lá ele encontrou o eunuco etíope, que era servo da rainha da Etiópia e administrador do palácio dela. Ele o encontrou quando estava num caminhom: a vida cristã é como um caminho. O caminho é uma categoria bíblica importante.
Portanto, Filipe não foi enviado a uma pessoa imóvel ou estagnada, mas a uma pessoa em movimento. A missão nunca pode ser dirigida a pessoas estagnadas. Quando os missionários foram para a África, eles não o fizeram porque os africanos eram uma sociedade estagnada que só precisava receber: eles tinham sua própria vida, fé e sonhos.
Fé e confiança do eunuco
O eunuco etíope era rico, poderoso em virtude de seu cargo e digno de confiança (a rainha confiava nele). Mas o mais importante era a fé e o desejo de buscar; ele era uma pessoa em busca de algo e esperava encontrar algo de que precisava: daí estar no caminho, a leitura do livro de Isaías e seu pedido de ajuda.
Na Bíblia, entretanto, os eunucos eram vistos de forma negativa. No livro de Deuteronômio, os eunucos não tinham permissão para se juntar a outras pessoas no templo e em outras reuniões religiosas. Ser eunuco era um sinal de morte, de falta de vida e continuidade, porque eles não podiam gerar. No entanto, Jesus teve outra visão quando falou dos eunucos para o reino de Deus. Ele estava lembrando o povo de Israel de algo que até mesmo Isaías havia anunciado séculos antes: que em Deus não há discriminação, pois Ele é um Deus de todos. De acordo com Isaías, até mesmo um eunuco que ouve, obedece e vive de acordo com a vontade de Deus receberá um nome eterno (Isaías 56,3-7).
Em outras palavras, embora os eunucos não pudessem ter filhos, há algo maior do que ter filhos, ter um nome eterno que, paradoxalmente, eles não podiam esperar que viesse de seus descendentes. Então foi Deus quem assumiu o controle: Jesus também se lembra disso, conforme mencionado acima (Lc 10,20).
O Espírito é o protagonista da missão
O Espírito de Deus disse a Filipe: “Vá até aquela carruagem e fique ao lado dela”. O Espírito Santo é o protagonista da missão e do trabalho de evangelização. Filipe correu à frente da carruagem; correr faz parte da dinâmica missionária de viver a fé. No Evangelho, vemos João e Pedro correndo para o sepulcro. Um cristão deve correr para o Senhor. Ele deve correr para anunciar a ressurreição como Maria Madalena.
Filipe estava ouvindo o que o eunuco estava lendo. Filipe não disse ao eunuco para esquecer o que estava lendo e ouvir a palavra de Jesus, mas começou ouvindo o que o eunuco estava segurando e tentando entender sem sucesso. A evangelização não significa eliminar ou rejeitar o que as pessoas têm, mas construir sobre o que as pessoas têm: sua cultura, sua fé, suas experiências, sua vida cotidiana. As pessoas não são vazias. Elas sempre têm algo com elas. O episódio apresenta o encontro de duas pessoas no caminho, compartilhando o que cada uma tem.
O eunuco estava lendo, mas não entendia o que estava lendo. No entanto, ele foi humilde o suficiente para pedir ajuda. A missão e a evangelização exigem humildade. Também é crucial ver que o eunuco não perguntou “o que isso significa?”. Em vez disso, ele perguntou “de quem o profeta está falando?”
Filipe teve a oportunidade de explicar as Escrituras. A missão e a evangelização exigem pessoas dispostas a ajudar seus irmãos e irmãs. No final, quando o eunuco viu a água e pediu para ser batizado. Filipe o batizou, mas foi imediatamente levado pelo Espírito Santo. Isso quer dizer que o Espírito não o deixou ali, e Filipe aceitou ser levado pelo Espírito.
Isso quer dizer que, mesmo em nossa missão, não devemos ficar ali cantando sobre o que fizemos. Esse gesto é um sinal de orgulho. Se o trabalho for feito com a intenção correta, Cristo estará no centro de tudo, e não usaremos nosso sucesso missionário para pregar a nós mesmos em vez de pregar a Cristo.
Assim, convido-lhes a compreender a necessidade de ir ao encontro dos outros, deixando-se guiar pelo Espírito Santo e tendo Cristo no centro de sus esforços missionários.
* A biblista Rosanna Virgili ensina exegese do Antigo Testamento no Instituto Teológico Marchigiano, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, na Itália.